domingo, março 13, 2005

A recta final


Beara Peninsula - Rep. Irlanda - Maio 2004 Posted by Hello

Tal como o ciclista da imagem, o meu percurso académico/profissional, começou bem lá em baixo, onde o vale glaciar se encontra com o Atlântico. E depois de muitos quilómetros percorridos, falta apenas um último esforço para... iniciar nova subida: o exame de acesso à especialidade aproxima-se inexoravelmente e tenho ainda umas últimas pedaladas para dar.

Para quem não conhece a "carreira" de um médico, este exame (no próximos mês de Junho) é O exame, que definirá toda a minha vida futura. Com base na nota do exame (e exclusivamente desta), depende a especialidade que poderei escolher para toda a minha vida profissional. E como tal, impõe-se que aumente a "potência" das pedaladas e que não mais me distraia do meu caminho. Vejo já o pelotão à minha frente, pelo que tenho que fazer um esforço para não descolar e chegar à recta final com perpectivas de poder fazer um bom sprint, para conseguir uma boa classificação.

Serve isto tudo para dizer aos potenciais leitores, que nos próximos meses, as minhas visitas a este blogue deixarão de ser tão regulares como até aqui, porque rapidamente o que começou como um hobbie se está a tornar num vício.

Serve também a presente para manifestar o meu profundo desacordo com o actual sistema de acesso a formação pós-graduada na Medicina (vulgo especialidade). Actualmente, após 6 anos de curso e 18 meses de internato geral (para quem começou este ano, já são "apenas" 12 meses), em 5 áreas diferentes (Medicina Interna, Cirurgia Geral, Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia e Cuidados de Saúde Primários), somos confrontados com um exame de escolha múltipla com 100 perguntas de cerca de 1.000 páginas de um livro de texto de Medicina Interna, onde qualquer assunto, qualquer detalhe ou excepção são potencialmente perguntáveis. Desta forma, o que é avaliado e seriado, não é a nossa capacidade clínica, a nossa aptidão prática, a nossa destreza de exame e comunicação, nem tão pouco a nossa capacidade de aplicar in loco a "ciência dos livros". Antes, preferem avaliar a nossa capacidade de memorização... Como se isso fosse muito importante para, por exemplo fazer uma microcirurgia de reanastomose vascular... Sem dúvida que o conhecimento teórico é importante, mas talvez a capacidade técnica, a acuidade diagnóstica, a comunicação e tantos outros aspectos que fazem da Medicina a mais científica das artes, sejam preponderantes.

Já expressei portanto o meu profundo desacordo com o actual método de selecção e formação pós-graduada... mas e alternativas? Muito simples na minha opinião... Ser como nos países ditos "desenvolvidos": uma combinação entre uma "prova" de conhecimentos específicos para a especialidade para a qual nos candidatamos (talvez não interesse muito a um otorrinolaringologista português saber que a prevalência de Doença de Crohn é superior nos Judeus Ashkenazi, ou a um radiologista saber que o serótipo do vírus da Hepatite B nos Estados Unidos é diferente do do Sul da Europa), e uma "entrevista" ou análise de perfil (currículo, aptidões práticas, comunicação e personalidade), uma vez que as características necessárias a um Psiquiatra ou a um Ortopedista são muito diferentes e não-avaliáveis pela capacidade de memorização.
E as "cunhas"? perguntam-me alguns... E então? Respondo eu.... O que acontece actualmente é que quem tem "possibilidade de meter cunhas" o faz descaradamente (qual de nós nunca ouviu a história do director de serviço que ameaça que alguém que não seja o seu desejado para a especialidade, nunca conseguirá terminar e fazer o exame final de especialidade). E algo, que eu considero muito mais grave do que isso é a desresponsabilização dos serviços e dos orientadores de formação, uma vez que não tiveram nenhum peso na escolha do candidato. O orientador e o serviço, podem sempre chegar ao fim e dizer que o "candidato" ou o interno, não fizeram melhor, porque ele não conseguia mais. Ao passo que, dada a possibilidade de escolha dos candidatos ao serviço, esta desculpa não é válida, porque foi o próprio serviço que o seleccionou porque achou que era o mais capaz. Isto, aliado ao facto de acreditar que todos os serviços querem ser "melhores do que a concorrência" e que portanto escolheriam o candidato mais apto (salvo raras excepções - que não existe forma de as evitar), para que o seu serviço pudesse melhorar. Sinceramente, preferia ver recusada a minha candidatura a um serviço face a outro menos apto, porque era amigo do irmão do primo do director de serviço, do que ser aceite e ser constantemente atraiçoado, porque "roubei" a vaga do amigo do irmão do primo do director...

Termino, que a reflexão já vai longa, com a certeza que ainda voltarei a falar neste assunto, provavelmente de forma mais ordenada e organizada...

Até amanhã... ou talvez não, mas há vícios que são difíceis de abandonar...

P.S. - Não, não sou amigo do irmão do primo de nenhum director de serviço... Nem sequer filho, sobrinho, afilhado ou sequer amigo íntimo de nenhum...

Comentários:

Começando pelo fim - de acordo, há séculos.
Indo ao princípio - boa sorte, sorte, sorte (aliada aos conhecimentos, claro está)  

Olá! primeiro , desejo-lhe imensa sorte , break a leg ;-) , que consiga decorar tudo e ter acesso a especialidade que deseja!
O maior problema dos acessos , por mais que lhe custe aceitar , foram criados por eles , O maior LoBBy profissional que existe em Portugal , onde 2/3 médicos dominavam uma especialidade e ai ja não se abriam vagas para afastar a concorrencia ...
Sei bem do que fala ... dava para 100 post  

compreendo a ausencia , mas qd poder apareça com os seus Post´s ! compreendo perfeitamente o Hobbie tornou-se um vicio...  

obrigado pelos desejos de boa sorte, mas já cá estou outra vez...

boa sorte para ti também Francisco.

quanto ao "sistema" de acesso à especialidade, admito que possa ter tido a sua utilidade num processo revolucionário pós Estado Novo, em que se terá passado do Clientelismo e dos Lobbyes, para um processo de anarquia e desregulação desenfreada.
Actualmente está completamente anacrónico e desajustado às necessidades cada vez maiores de uma Medicina eficaz e compentente!

Obrigado a todos!  
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