sexta-feira, dezembro 10, 2004
Açorda de marisco
Era um velhote simpático. Oitenta e dois anos; uma cara redonda e bonacheirão. A voz, quase não se ouvia de tão sussurrada que era. Tinha 2 olhos pretos, muito pequeninos e encovados. Assustado com tudo o que lhe estava a acontecer.
Tudo tinha começado 2 dias antes. Era Sábado, mas podia ser outro dia qualquer. Para ele, os dias eram todos iguais. Vivia sozinho. Nunca fora casado. Tinha acabado de jantar; de comer o seu jantar; o jantar que ainda sabia fazer - fôra cozinheiro, dizem que dos melhores. A dor no peito começou devagarinho. Mais um aperto do que uma dor. Já era normal. Era a doença que tinha. A SUA doença, diagnosticada por um amigo - médico - que às vezes lá ia jantar. Mas desta vez não passou com os comprimidos. Nem com o primeiro, nem com o segundo. Telefonou ao empregado doméstico, que lá ia ajudar a tomar conta da casa; 112; INEM; hospital. Felizmente não esperou muito.
Puseram-lhe uns fios no peito. Perguntaram o que sentia, como tinha começado, se era costume ter esta dor, se tinha doenças e que medicação tomava. Enquanto isso a dor continuava. E ele estava assustado.
Era a 1ª vez que se via assim, dependente, deitado numa maca ao lado de outras tantas, despojado de toda a privacidade, com pessoas a gritar e a gemer junto a ele - enfim, num SU de um hospital central. Mediram-lhe as tensões. Puseram-lhe uma máscara com oxigénio; um comprimido para mastigar, outro debaixo da língua e uma injecção. Finalmente a dor aliviava. Finalmente algum conforto, agradecido a quem o ajudava.
Disseram-lhe que tinha um enfarte. Que tinha que ficar em observação. E assim ficou até seguir para o serviço - quase 2 dias de angústia. A dor não voltara mas não sabia se ainda viveria muito. Agora estava melhor. Pena que tinha que manter o repouso - estava farto de estar na cama. Felizmente era Primavera e o hospital não estava frio, mas a solidão também dava frio. No fim-de-semana não tinha tido visitas. E a comida. A comida não prestava.
Mas mantinha-se sorridente. Aguardava o dia em que lhe disséssemos que se podia ir embora. Afinal, queria voltar a comer a sua comida. A comida que tinha servido à Rainha D. Amélia, quando ainda era jovem, ou mais tarde à Rainha Isabel II quando visitou Portugal. Já tinha servido presidentes, ministros, até actores de Hollywood. Mas agora estava ali sozinho. Viva da reforma. Às vezes lá apareciam uns amigos. Tomava os medicamentos religiosamente, as pernas é que já não deixavam caminhar muito.
Fez mais uns exames. Cintigrafia de perfusão miocárdica. Felizmente não havia isquemia residual. O ECG tinha regressado ao normal. Cateterismo com doença de 2 vasos - oclusão de 80%. Sem indicação cirúrgica.
Teve alta 1 dia depois do prometido. Agradeceu os cuidados e a companhia (pouca) que lhe fizémos. Foi embora feliz, acompanhado pelo criado, o mais fiel dos amigos. Afinal não era desta que morria.
E deixou uma receita: açorda de marisco...
Tudo tinha começado 2 dias antes. Era Sábado, mas podia ser outro dia qualquer. Para ele, os dias eram todos iguais. Vivia sozinho. Nunca fora casado. Tinha acabado de jantar; de comer o seu jantar; o jantar que ainda sabia fazer - fôra cozinheiro, dizem que dos melhores. A dor no peito começou devagarinho. Mais um aperto do que uma dor. Já era normal. Era a doença que tinha. A SUA doença, diagnosticada por um amigo - médico - que às vezes lá ia jantar. Mas desta vez não passou com os comprimidos. Nem com o primeiro, nem com o segundo. Telefonou ao empregado doméstico, que lá ia ajudar a tomar conta da casa; 112; INEM; hospital. Felizmente não esperou muito.
Puseram-lhe uns fios no peito. Perguntaram o que sentia, como tinha começado, se era costume ter esta dor, se tinha doenças e que medicação tomava. Enquanto isso a dor continuava. E ele estava assustado.
Era a 1ª vez que se via assim, dependente, deitado numa maca ao lado de outras tantas, despojado de toda a privacidade, com pessoas a gritar e a gemer junto a ele - enfim, num SU de um hospital central. Mediram-lhe as tensões. Puseram-lhe uma máscara com oxigénio; um comprimido para mastigar, outro debaixo da língua e uma injecção. Finalmente a dor aliviava. Finalmente algum conforto, agradecido a quem o ajudava.
Disseram-lhe que tinha um enfarte. Que tinha que ficar em observação. E assim ficou até seguir para o serviço - quase 2 dias de angústia. A dor não voltara mas não sabia se ainda viveria muito. Agora estava melhor. Pena que tinha que manter o repouso - estava farto de estar na cama. Felizmente era Primavera e o hospital não estava frio, mas a solidão também dava frio. No fim-de-semana não tinha tido visitas. E a comida. A comida não prestava.
Mas mantinha-se sorridente. Aguardava o dia em que lhe disséssemos que se podia ir embora. Afinal, queria voltar a comer a sua comida. A comida que tinha servido à Rainha D. Amélia, quando ainda era jovem, ou mais tarde à Rainha Isabel II quando visitou Portugal. Já tinha servido presidentes, ministros, até actores de Hollywood. Mas agora estava ali sozinho. Viva da reforma. Às vezes lá apareciam uns amigos. Tomava os medicamentos religiosamente, as pernas é que já não deixavam caminhar muito.
Fez mais uns exames. Cintigrafia de perfusão miocárdica. Felizmente não havia isquemia residual. O ECG tinha regressado ao normal. Cateterismo com doença de 2 vasos - oclusão de 80%. Sem indicação cirúrgica.
Teve alta 1 dia depois do prometido. Agradeceu os cuidados e a companhia (pouca) que lhe fizémos. Foi embora feliz, acompanhado pelo criado, o mais fiel dos amigos. Afinal não era desta que morria.
E deixou uma receita: açorda de marisco...