sábado, março 05, 2005

A medicina humanista

"Hoje em dia quando um doente entra no consultório, a primeira coisa que faz é mostrar os imensos exames e radiografias que traz na mão. E o mais estranho é que se lhe peço para me falar de como se sente, do que tem, até fica surpreendido"

João Lobo Antunes in JN

Mas é esta a Medicina que muitos (doentes) querem. Na minha última urgência, dizia-me uma mãe: "Ó dôtore, parece impossível! Já vim 5 vezes à Urgência com a criança e ainda não lhe fizeram uma chapa". Não queria saber do exame físico, do que a levava lá. Queria que a criança fizesse "uma chapa". Lá lhe tentei explicar que os exames de diagnóstico, principalmente nas crianças, só devem ser feitos quando realmente necessários. Que têm problemas, que custam dinheiro e que muitas vezes não trazem informação nova. A criança, coitada, acabou por levar com umas análises, porque a mãe insistia que tinha febre (curiosamente nunca teve, durante as para aí 8 horas que esteve no SU). Como estávamos à espera, as análises eram normais.

Mas voltando ao tema... Hoje em dia, bom médico é aquele que pede muitos exames. E quanto mais complicados melhor. De que interessa fazer um exame neurológico completíssimo, se a D. Joaquina quer é fazer "um taco à cabeça". De que interessa colher uma história clínica completa, se o Sr. Fernando quer é fazer "umas análises gerais".

É cada vez mais difícil ser um médico humanista. Ouvir, examinar, aconselhar, apoiar. São coisas cada vez mais difíceis, cuja dificuldade aumenta em relação directa com os avanços técnicos da medicina. Os médicos, cada vez mais são (e têm de ser, na minha opinião), dividos em dois grupos. Não é os médicos de primeira e os de segunda, mas os médicos de cuidados primários, que conhecem o doente a fundo; que têm de ter tempo para os "seus" doentes; que conhecem o contexto familiar e social dos indivíduos; que ouvem e apoiam. E os outros... Os técnicos diferenciados. Os que executam as técnicas altamente diferenciadas; os que tratam de doenças específicas; os que se especializam em alguns dos sistemas desse "universo" que é o ser humano. São os médicos que tratam doentes e os médicos que tratam doenças...

E a escolha, está também nas mãos da sociedade. Se querem continuar a descredibilizar os cuidados de saúde primários, em detrimento dos "cuidados hospitalares". Se querem estabelecer uma ligação ao "seu" médico de família, ou recorrer de forma desordenada e desconexa às urgências hospitalares; se preferem tratar dos seus familiares doentes em casa ou depositá-los numa enfermaria de um hospital; se querem continuar a ter hospitais desumanizados, com enfermarias colectivas, burocráticos e centralizados ou centros de excelência, mais pequenos, com privacidade e pessoal dedicado; se querem continuar a "explorar" os erros médicos, forçando uma medicina defensiva, baseada no confronto e nos meios auxiliares de diagnóstico ou se por outro lado preferem uma medicina de "responsabilidade partilhada", baseada na confiança e no humanismo.

Se o humanismo, por parte dos médico, obriga a ver o doente como um todo, a perceber o contexto da doença e do seu impacto na vida do indivíduo, em compreender e ajudar; ao doente obriga a confiar e respeitar o seu médico, a aceitar que nem todos os problemas têm resolução (pelo menos em tempo útil), que o "seu" médico tem mais doentes, mas acima de tudo que o seu médico também é Homem, também tem dias bons, tem dias maus, tem emoções, família, erros, alegrias e tristezas, amigos, sofrimento, doenças, dores, mágoas, mau-feitio, férias, luxúria, contas a pagar, fins-de-semana, horário de trabalho, paixões, clube de futebol, partido político, ambições, cansaço...

O dia chegará em que os médicos serão funcionários, operadores de um computador, em que se limitarão a pôr os dados de um lado e a recolher a terapêutica do outro. E os humanistas, que ouvem, vêem e tratam os doente passarão a ser os curandeiros do futuro! Ou talvez não...

Comentários:

Como disse o mesmo Prof Manuel Antunes, em Setembro de 2004, no Congresso Nacional de Medicina Familiar:
-"… a tecnologia aumentou o poder do médico, pela objectivação da doença, mas empobreceu a face humana da clínica, subtraindo até o valor terapêutico do gesto mais ancestral da cura, que era o acto de tocar"
-"… a visão ética corre o risco de se tornar um frio exercício de racionalidade, indiferente à face humana do sofrimento."
-"… a humanidade da profissão está ferida"
-"… é cada vez mais arriscado ser médico, por razões intrínsecas e extrínsecas ao próprio saber médico"
-"… mas tais razões justificam que os médicos se tenham tornado mais tímidos, mais cépticos, mais desiludidos…."?

MUITO BOA REFLEXÃO A TUA - COMEÇO A ACREDITAR QUE A NOVA GERAÇÃO VAI FAZER VOLTAR A DIGNIDADE À PROFISSÃO  

Mas existem sempre uns pobres de espirito , que andaram pelos EUA e acham que se tocam , levam com um processo ...  

como doente (isto fica um bocado mal dito assim, mas sempre é melhor do que cliente) prefiro poder falar e estar suficientemente à vontade para contar o que é preciso, rir, chorar, etc, fazer perguntas ridículas. Claro que a competência técnica é essencial, mas se não se pode conversar com a pessoa que nos trata, que zela pela nossa saúde, então estamos perdidos.
muitas vezes é preciso admiti-lo são também os médicos que não conseguem conversar, muitas vezes nem por culpa deles...
tudo isto faz-me lembrar a árvore da vida, uma filosofia defendida por Mandela e praticada no Parlamento do Mali: a conversa é a coisa mais íntima que existe. Nunca devemos desqualificar os outros. Devemos olhá-los nos olhos. Devemos promover a discussão (o consenso apaga as diferenças). São ou não são bons princípios para o relacionamento com os outros? Nem sempre conseguimos segui-los (por medo da intimidade, da timidez, etc) mas eu pelo menos tento lembrar-me deles e fazer-lhes justiça.
é só uma ideia para ficar a magicar na cabeça dos doutores...  

Na saúde é necessária uma abordagem global sem ignorar os elementos e sem negligenciar as interacções entre os elementos (Walter Hesbeen): É "ver uma folha em toda a sua clareza, sem perder de vista a sua relação com a árvore".  

A saúde é uma área política onde pontificam o Estado e as empresas. O Estado e as empresas precisam de promover o consumo: o Estado, para convencer os cidadãos de que está a dar-lhes qualquer coisa senão eles não vootam...), as empresas, para serem rentáveis e não falirem.
Como a maioria das pessoas são (felizmente) saudáveis, o consumo não se pode (numa óptica pragmática) sustentar apenas com os doentes, uma minoria. Portanto a atitude predominante (não necessariamente consciente ou deliberada) será a de promover a relação da maioria (os saudáveis)com as "coisas" (exames, máquinas, medicamentos, cirurgias) e não com as pessoas (médicos e técnicos de saúde). No caso dos médicos de família a situação é ainda mais complexa porque eles tendem - como é próprio dos cuidados de saúde primários em todo o mundo - a promover a autonomia das pessoas, ou seja, a despromover o consumo...
QED (digo eu) ;-)  

Tens a certeza "Também Ex-isto!. Pelo que tenho podido apreciar, não: essa nova geração de que falas está cada vez mais agarrada, ao breve olhar superficial, ao palpite que pode ser certeiro,aos exames que vamos lá-ver-se-mostram-o-que-queremos, e ao tratamento de tipo ou-vai-ou-racha.
Porque, apesar do que aqui se lê com agrado, uma andorinha não faza primavera.  

Gostei do que li nesse texto. Apesar do texto me parecer heterogênio.Pois há trechos com os quais eu concordei plenamente, como por exemplo a definição de bom médico como aquele que pergunta, escuta, EXPLICA,e toca(eu sempre esperei algumas dessas qualidades de um médico, raramente eu encontrei).E há trechos em que a arrogância e prepotência dos médicos vem a tona(assim me pareceu), por exemplo quando se tenta atribuir a mãe da criança a culpa de um problema macro-estrutural. E a ação do médica tem que ser a de tentar esclarecer, mesmo que se tenta que explicar de maneiras diferentes.
De maneira geral o problema descrito tem relação com o modo como a comunidade medica sempre se relacionou com o restante da sociedade, de maneira distante e não abrindo o dialogo;e com a mecânização do atendimento medico imposto pelos planos de saúde a fim de diminuir custos.
Portanto a sociedade ocupa, infelizmente , o papel de agente dos efeitos,ficando longe dos debates para solução desta questão.  

Gostei muito desse texto, e conheci seu Blog pelo vestibular de medicina, do ano de 2008, da universidade Anhembi Morumbi, muito legal, e eu gostaria também de umas dicas do Sr.s, porque eu quero me formar em medicina, e ainda estou no 2º ano do ensino médio/técnico de gestão comercial.
grato Lucas Matheus,
Feira, BA  
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