terça-feira, março 08, 2005

O meu 1º domicílio

Estava eu na já aqui falada pequena cidade do Alto Douro, a realizar o meu estágio em Medicina Comunitária no 6º ano do Curso de Medicina, quando realizei o meu 1º domicílio.
É prática habitual a visita dos médicos dos Centros de Saúde a alguns dos seus doentes (normalmente os incapacitados) ao seu domicílio. Porém, neste caso a visita processou-se com a Assistente Social do Centro de Saúde da área, visto que os problemas em questão eram de ordem social e não estritamente médica.

Chegamos a uma pequena aldeia, a cerca de 10 km da pequena cidade, a um ponto onde terminava a estrada propriamente dita. Era um largo, com um carvalho centenário e um pequeno fontanário. A partir daí, saiam duas pequenas "ruas" de terra batida. Depois de termos perguntado onde ficava a casa em questão, atrevemo-nos a meter o carro por uma dessas ruas. Chegamos à casa, onde nos esperava a Mãe, com os seus dois filhos, na melhor roupa que tinham porque "vinham cá os Srs. Doutores".
Logo à entrada, do lado direito da porta, tínhamos a "casa-de-banho" da família. Um penico e um "chuveiro" artesanal, que mais não era do que um regador com uma corda. Tudo isto, tapado por uma daquelas cortinas de casa-de-banho dos supermercados.
De seguida, passamos um tapume de contraplacado e desembocámos na "adega". Depressa o cheiro a vinho se sobrepôs ao cheiro dos lavabos e, dada a nossa falta de hábito, quase ficámos ébrios antes de termos completado 3 inspirações.
Convidaram-nos então a subir, onde tinham uma cozinha, 2 quartos e uma sala com televisão e computador "ligado à internet". Fosse a entrada directa para o "1º andar" e fora as divisórias em contraplacado, estávamos perante uma qualquer casa de uma qualquer família portuguesa de classe média.

Sentámo-nos então (nas melhores cadeiras que tinham), para começar a compreender porque é que o Márcio tinha mau aproveitamento escolar. Tinha 13 anos e estava na 3ª classe. Aparentemente era em tudo uma criança inteligente. Mexia no computador como ninguém lá em casa. Dava pontapés na gramática e não "sabia" fazer contas, mas dava sinais de um raciocínio vivo e inteligente.
E as coisas lá foram saindo a "saca-rolhas"... No inverno, quando estava muito frio, à saída pela adega, bebia uma malgazinha de vinho... ou duas, ou três. Que depois na escola não se conseguia concentrar. O pai (que trabalhava como "caixeiro-viajante"), só vinha a casa no fim-de-semana e como se "zangava" pelo "mau comportamento" do filho durante a semana, batia-lhe com uma vara que tinha guardada na cave. Ele, revoltava-se e "fugia" para o café, onde "tomava umas cervejas" e fumava uns cigarros com o dinheiro ganho a "jogar às cartas".

Depois de cerca de uma hora e meia "em conversa", viemos embora, mas a Assistente Social ia regressar na semana seguinte, para dar seguimento ao caso, depois de contactar a escola e as instituições de apoio da área. Nós já lá não estávamos, mas gostava de saber o que aconteceu ao Márcio.
Desta visita, o que mais me chocou foi a "naturalidade" com que encaravam toda esta situação e a passividade que demonstravam em não querer mudar de vida. O dinheiro não abundava, mas chegava perfeitamente para viverem numa casa com boas condições higiénicas. Mas ao que parece, as prioridades estavam um pouco "trocadas": preferiam ter um computador a uma casa-de-banho; preferiam "levar tareia" do pai, mas ter um tecto; não conseguiam impedir que a criança fosse ao café "beber umas cervejas".

É em situações como estas que sinto que ainda vivemos num país sub-desenvolvido... principalmente a nível de cultura!

Comentários:

E às tantas é daqueles a quem, para parar de chorar, em bébé, usaram um remédio ancestral (qual aero-om), também líquido, não rosa mas vermelho, aquecido e misturado com açúcar, a embeber um paninho atado com um fio para parecer uma mamadeira. Refiro-me ao maduro tinto da região, claro está.
As "SOPAS DE CAVALO CANSADO" do recém-nascido!  
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