terça-feira, janeiro 25, 2005

Crime ou não crime? Ou a dúvida sobre o aborto...

Vem de longe e é recorrente o tema da legalização do aborto, ou interrupção voluntária da gravidez, como é "politicamente correcto" dizer-se...

A questão básica limita-se a um conflito entre 2 direitos: por um lado o direito à vida humana desde o seu início; por outro lado o direito da mulher a dispôr do seu próprio corpo. Mas, encerra muitos mais problemas dentro destes. Mas vamos por partes...

O direito à vida, esbarra logo e de forma importante na definição, no conceito de vida humana. Desde quando se considera vida humana. Desde o momento da fecundação, dizem os mais radicais. Desde as 12 semanas, quando existe sistema nervoso, dizem outros. Ao nascimento dizem alguns. Outros há que acham que é só aos 2 anos de idade, quando a criança atinge a consciência da sua existência. Depois existem as variantes, da vida em potencial, mas o que é vida em potencial? Ao nascimento, em que existe potencial de vida, mas a criança tem de ser cuidada e alimentada para sobreviver? Desde que se passa de embrião para feto, quando todos os órgãos estão formados e existe portanto um ser em potencial, mas que necessita do útero materno para se desenvolver? Desde a fecundação ou da nidação, em que existe já uma célula diplóica, com todo o material genético e a capacidade para se desenvolver e transformar num ser completo. Ou num óvulo e num espermatozóide, que têm em si próprios capacidade para gerar vida caso se conjuguem.
Temos portanto que aquilo que se considera eliminação de uma vida ou do seu potencial, pode ir desde os mais fundamentalistas na masturbação (ou até mesmo numa menstruação), passando pelas várias etapas de desenvolvimento do novo ser (embrião, feto), terminando no momento do parto (felizmente, nunca ouvi niguém considerar o infanticídio como "aborto").
Temos portanto que qualquer posição acerca da IVG (interrupção voluntária da gravidez) que seja baseada no conceito de vida humana, tem desde logo este problema para resolver.
Na minha opinião pessoal, vida humana deveria ser considerada a partir das 34 semanas de gestação (minimo a partir do qual o feto, sobrevive fora do útero materno).

Depois temos a questão da maternidade e paternidade responsável. A utilização (ou pelo menos a decisão de não utilização) de métodos anticoncepcionais é fundamental para qualquer pessoa que queira viver uma sexualidade saudável (já nem sequer falo das DST's). Existem já alguns métodos anticoncepcionais por alguns considerados abortivos (DIU, pílula do dia seguinte, p. ex.), uma vez que não impedem a fecundação. Existe também a falência dos métodos anticoncepcionais, mesmo que correctamente utilizados. E existem também os casos em que os métodos anticoncepcionais, pura e simplesmente não são utilizados (também denominada irresponsabilidade).

Temos ainda a questão do direito da mulher a dispôr do seu próprio corpo, que choca directamente com o direito à vida do feto e pode ou não chocar com o direito à paternidade do pai. Contudo, uma gravidez, não deixa de ser algo exclusivamente feminino, que apenas é vivido e sofrido pelas mulheres, sendo que em última análise, deverão ser estas a decidir se querem ou não viver esta experiência.

E poderíamos ainda "desenvolver" estes direitos contraditórios ou estas definições polémicas... Mas corria o risco de não acabar esta mensagem antes do fim-de-semana.

Passando então à criminalização/descriminalização da IVG... Existem já vários motivos, pelos quais é lícito interromper uma gravidez (violação, malformações genéticas, risco de vida para a mãe). Por outro lado, a criminalização do aborto, não leva a uma diminuição da sua prática; leva apenas à hipocrisia de os abortos serem feitos na clandesitinidade (com a complacência das autoridades), com risco de vida para as grávidas (ou seria ex-grávidas) e com julgamentos ridículos em que são "contornadas" as leis à medida das conveniências. Mais ainda, a descriminalização do aborto, não obriga a que alguém o faça, dando a liberdade de o fazer a quem o desejar. Muitos argumentam que também não é por descriminalizar o homicídio que se obriga as pessoas a assassinar alguém, e que não passa pela cabeça de ninguém descriminalizar o homicídio - o que mais uma vez nos leva à definição de vida humana (e pode-nos levar à discussão sobre a eutanásia). Por outro lado, temos os que defendem que a IVG não deve ser usada como método anticoncepcional, e que as pessoas têm é que ter cuidado antes... (ficando de fora as falências dos métodos anticoncepcionais - os chamados azares - e corrigindo um erro - a falta de cuidado - com outro possível erro - a colocação no mundo de mais um ser não desejado, que poderá não ter condições de vida minimamente aceitáveis - o que também é refutado com exemplos de abortos que não foram feitos e foram felizes a vida toda...)

Em conclusão, a minha posição relativamente ao aborto é: descriminalizar a IVG, assegurando que existe de facto educação sexual para os jovens; nenhum profissional de saúde seja "obrigado" a executar uma IVG se considerar que isso vai contra os seus princípios; as mulheres que o façam tenham acompanhamento psiquiátrico prévio, que se assegure da "vontade" absoluta de tomar tal decisão.

Choca-me viver numa sociedade que recorra à IVG como método anticoncepcional. Eu não o faria e enquanto médico, reservo-me sempre o direito a não o fazer (excepto em casos de malformação, violação ou perigo de vida para a mãe). Contudo, penso que não tenho o direito de impedir que os outros o façam (desde que conscientemente) e que o possam fazer em condições que não ponham em risco a sua saúde, até ao momento em que considero existir vida humana - aqui passaria a ser crime... Gostaria de acreditar (embora por vezes seja difícil) que qualquer mulher que o faça, seja apenas em circunstâncias de desespero extremo e que o simples facto de o fazer seja já um fardo e um "castigo" que carregará para o resto da vida e gostaria também de pensar que para o ser "não-nascido", é preferível não nascer do que levar uma vida miserável...

Comentários:

Desde que descobri este blog gosto de passar por cá todos os dias e ver os excelentes post que muitas vezes nos deixam a pensar.
Na minha simples opinião (embora ninguém tenha perguntado) o aborto deve fazer parte da decisão de quem quer ter ou não um filho, e poderia dar aqui imensos exemplos (mas vocês médicos melhor do que eu conhecem)para tal ser ou não feito.
Mas acho que o amadurecimento de uma mulher e a vontade de ter ou não um filho será para mim o mais importante.
Sem entrar nas polémicas de bons ou maus pais, ou se são mais pais os biológicos ou os que dão amor, mesmo não sendo biológicos.
Acho que ter um filho é uma "profissão" a tempo inteiro. É o saber abdicar de "si" enquanto ser e passar a pensar principalmente nele "ser" (depois de nascer claro) e para isso é preciso preparação e vontade.

Mas esta é só a minha opinião.

I.  

Caro(a) I.

O simples facto de "existir" uma caixa de comentários, é uma forma de pedir a opinião de todos por quantos aqui passam... E um dos nossos objectivos é estimular a troca de ideias... só da discussão nasce a luz! Continua a passar por cá e a "mandar bitaites"!!!  

Também concordo que a opinião do pai deveria ser tomada em conta, mas dessa forma, perde legitimidade qualquer argumento que leve em linha de conta a vontade da mulher a viver a maternidade. Da mesma forma, se a sociedade se assegurasse da criança, ou se houvesse um casal com vontade de adoptar a criança logo desde o nascimento, esse argumento seria válido... Acho difícil de encontrar um meio termo.

Quanto a ser efectuado no SNS, acho que sim. Por 3 motivos.
1. Pelo que disseste de as pessoas pobres continuarem a recorrer a vias clandestinas.
2. Porque assume-se que não é um "capricho" mas sim um problema de saúde pública e portanto deve ser garantido pelo estado.
3. Porque se não entrávamos na discussão de os fumadores também pagarem os seus cuidados de saúde (porque também são "culpados" pelo seu estilo de vida).  

Caro Medman: texto excelente.
Duas coisas: como sabes, a fronteira das 34 semanas é um pouco tipo feriado móvel, quer a ciência quer outras considerações podem alterar um pouco esse limite.
E a frase final do teu post, como sabes também, merece algum cuidado para não entrarmos em soluções eugénicas...  

Adorei essa do "feriado móvel"... Mas é claro que sim. E acredito que dentro de uns anos essa fronteira vai estar, pelo menos, largas semanas mais atrás.  

Tenho sempre muita dificuldade em falar do tema do aborto. Porque a minha questão-base é exactamente a que aqui é colocada: qual o princípio da vida humana? Se só é vida humana após as 34 semanas, a tal actual barreira para a capacidade de sobrevivência de um feto, o que é antes? O que era a minha filha às 34, 20, 12 ou 1 semana de gestação, senão o ser que veio a ser, através do seu desenvolvimento natural dentro do meu útero? Era ela, numa fase diferente da sua vida, mas indispensável a que um dia ela nascesse e fosse humana. E por isso não sei chamar a esses estados pré-34 semanas nada senão "vida humana".
Depois, tenho grandes dúvidas quanto ao efeito da lei de descriminalização quanto a evitar abortos clandestinos por parte de um bom número de mulheres que escondem o seu estado, e o escondem da família como o escondem do médico onde não vão fazer consultas de planeamento familiar, por exemplo. Ou seja, a promoção de uma educação sexual a sério é essencial.
Finalmente, o argumento usado de que "penso que não tenho o direito de impedir que os outros o façam (desde que conscientemente)" depende directamente do que em primeiro lugar disse: de definir o que é vida humana. Essa é a definição essencial para tudo o resto, a meu ver.  
Enviar um comentário

«Inicial